sexta-feira, 4 de abril de 2014

Romance da empregada

A Mere é minha faxineira desde que eu vim morar sozinha, mas antes ela já trabalhava na casa de uma amiga há muitos anos. Ela vem de 15 em 15 dias, deixa tudo brilhando e sempre rearruma alguns objetos. No ano passado ela percebeu que eu estava muito mal e me levou a um vovô de umbanda que é tio avô dela, lá em Engenheiro Pedreira, onde ela mora. Nesse dia eu conheci toda a família dela e eles me trataram como se eu fosse um deles, me deram almoço, amor, café e uma luz. Foi fundamental para que eu recuperasse a fé e a coragem.
A Mere é casada e tem dois filhos, uma menina de doze e um menino de nove anos. Os dois estão obesos. O marido da Mere é chaveiro. Eles dois trabalham no Rio todos os dias o dia inteiro, por isso a filha teve que aprender a cozinhar e só faz comidas engorduradas. Os dois não gostam da escola, que segundo a Mere, está sempre sem professor. Hoje ela chegou aqui dizendo que o menino passou do quarto para o quinto ano sem saber escrever e que a menina sofre bullyng, mas ela não sabe o que fazer.
Fiquei pensando na situação da Mere.
É a mesma situação de muitos dos meus alunos de Seropédica.
Não sei qual é a solução.
Cheguei a sugerir que ela procurasse uma escola particular para a menina, me propondo a ajudar na mensalidade. Mas depois me perguntei se isso resolveria o problema. Comecei, então, a maquinar utopias: Escola integral onde não falte professor, que tenha café da manhã, lanche, almoço, outro lanche e janta, tudo com comida bem feita e variada, acompanhamento nutricional, com atividades esportivas interessantes pelo menos duas vezes na semana, sala de leitura e espaço de vídeo, com horários reservados para os mesmos, horário de estudos, psicóloga, orientadora educacional, limpeza, conforto e transporte para passeios.
Pronto, o problema da Mere e das mães dos meus alunos que chegavam ao Ensino Médio analfabetos funcionais estaria resolvido. Mas isso não existe. O que posso dizer a ela? Pra ela chegar mais cedo em casa? Pra arranjar uma explicadora para o filho? Estou perplexa e enquanto isso a Mere está fazendo um arroz integral cheirosíssimo pro almoço. Eu sou heroína as vezes, a Mere é todos os dias.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ontem o professor de Filosofia social e política I, que me dá aula de nove as dez e quarenta, passou a "seção", como ele diz, inteira discutindo uma frase da "República" de Platão que diz assim: "Ser vítima de uma injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la". Eu estava muito cansada. Saí de casa as seis e meia da manhã, peguei o 247 até a Presidente Vargas, andei até a rodoviária xexelenta que fica atrás da Central, peguei o ônibus pra Queimados, saltei na Dutra, atravessei a passarela e cheguei na escola. Dei aula a manhã inteira. De tarde teve reunião. Saí de lá as cinco. Fui direto para a UERJ. Dessa vez peguei uma carona até a Pavuna e o metrô até o Maracanã. Fui tentando ler o capítulo 7 do livro 1 da Ética a Nicômaco, mas volta e meia tinha que parar porque havia muitos torcedores do Botafogo indo para o jogo e fazendo bagunça. Assisti aula de Introdução a Filosofia as seis. A professora falou que para ser filósofo deve-se lembrar do Guimarães Rosa: "Estar a toa muito ativo". Pensei: "Oh, how i wish..." Na segunda aula, de Ética, passamos muito tempo discutindo o sumo bem, o bem final e todos os bens complementares. A riqueza para Aristóteles não é um bem. Interessante. É nessa aula que eu sempre sinto mais saudade do IFCS. Ontem cheguei a parodiar a Clarice Lispector: "Saudade é pouco, o que eu sinto ainda não tem nome". E aí veio a última aula e essa dissecação extensa da sentença platônica. Peguei o elevador pra descer e, no hall do primeiro andar, vi minha ex-orientadora do IFCS, que estava lá, certamente, por causa dos eventos de descomemoração dos 50 anos do golpe de 64. As nossas reações nesses momentos são involuntárias, é como um assalto que a gente nunca sabe se vai reagir. No ano passado, quando eu estava desmoralizadíssima, a vi algumas vezes no cinema. Em todas fingi que não vi por vergonha. Ontem, na fração de segundo em que passei por ela eu a olhei e cumprimentei. E não abaixei a cabeça. Saí da UERJ, atravessei a rua, peguei o 247 e fiquei um tempão parada no engarrafamento, causado pelo jogo do Botafogo. Cheguei em casa as onze e dez. Tomei banho e jantei algumas colheres do brigadeiro que a minha amiga que mora comigo havia feito. Não resisti, estava uma delícia. Ficamos conversando, assisti "Água viva" e fui dormir. Hoje acordei as seis e meia. Estou indo novamente para Nova Iguaçu, novamente dar aula o dia inteiro. Eu tenho toda a dignidade do mundo e tenho muitas dúvidas (a dúvida é o preço da pureza, já diriam os Engenheiros do Hawai) se essas pessoas vaidosas que me jogaram no ostracismo, tendo as suas merdas expostas, vendo a sua tragédia pessoal virar fofoquinha de festa de sábado a noite, teriam a força que eu tenho. Voltar para a graduação, desde o momento em que se paga pelo vestibular e se passa o domingo fazendo a prova, até assistir aula depois de trabalhar o dia inteiro, é um sinal de humildade e de vontade de acertar. Esses grandes homens que me condenaram nunca tentaram me ouvir de verdade, foram movidos por paixões e acabaram por ser injustos. Era mais fácil nunca mais saber de mim e não me ver saindo de outra universidade as dez da noite. A saudade que eu sinto é como a de uma pessoa que morreu, mas fui eu que morri.  E sou eu que estou viva, mais do que nunca. Merda todo mundo tem. Estou viva.

domingo, 30 de março de 2014

A faculdade de Filosofia poderia se chamar "Tão longe, tão perto" se fosse um filme. Minha primeira professora tem nome de jovem, usa vestidinho curto, é bonita e fala de Aristóteles como eu falo do Gilberto Braga. Estou achando tudo lindo, mas ao mesmo tempo estranhíssimo. As perguntas que os alunos fazem são muito diferentes, questões que eu não faria. Me sinto uma ignorante total e não deveria ser, depois de uma faculdade de História, meio mestrado, três meias pós graduações latu sens e três anos dando aula de Filosofia para o Ensino Médio, não era para ser assim. Mas o fato é que só sei que nada sei. Platão, Sócrates e Aristóteles são meus mais novos companheiros e eu percebo que muita coisa vem deles. Pretendo descobrir nos próximos dias o que é o bem, a felicidade e um diálogo chamado Fedro. Me aguardem. Essa professora passou a introdução de "2001, uma odisseia no espaço" para falar do nascimento das indagações filosóficas e da cultura com a turma. É sensacional mesmo. Fiquei fascinada. E me lembrei, enquanto ela discutia lá com todo mundo, da referência que "Adeus Lenin" faz a "2001", menção essa que é sim definitiva e muito bem citada. Comentei com a professora depois da aula, mas ela não deu muita atenção. Deve ter achado que era uma observação típica de historiador. Mas não posso mais querer ser historiadora. Vi hoje um edital de mestrado para professores de História e pensei que não é pra mim. Não pode ser pra mim. Não pertenço ao meu passado. Uma bosta sem tamanho. Estou tentando investir nessa nova carreira, mas a verdade é que estudar depois de trabalhar longe o dia inteiro, é difícil. As vezes bate um baita desespero. Tem momentos que as aulas ficam meio cansativas e eu sinto vontade de ir para o corredor tomar um café e dar uma olhada nas pessoas. São essas as horas mais difíceis, em que o IFCS, lateja no meu coração e eu sinto uma baita vontade de chorar. Sexta-feira a noite eu enfrentei a exposição da ditadura que está no CCBB e, voltando pra casa, passei pela rua do Ouvidor. Não resisti, nunca vou, e olhei o IFCS, todo aceso, lindo, meu prédio do coração. Foi arrancado de mim. Tenho que aprender a viver sem ele. As vezes imagino que daqui a uns 20 anos, quando alguns desses grandes homens que me jogaram pedras já estiverem mortos, eu vou ter coragem de entrar lá de novo e não vou mais ser lembrada, mas vou lembrar de todo mundo. Vou ver uma meia dúzia de pessoas que estudaram comigo passando, doutores, professores adjuntos, e vou me debruçar sobre o parapeito do terceiro andar, olhar lá pra baixo e chorar pela despedida que não aconteceu. Não tive tempo de dizer adeus para o que eu mais gostava na minha vida, para o pátio a tarde, para as salas, para a Rádio Saara e para o queijo com banana do café gerenciado por um ex-guerrilheiro que sempre tinha sorrisos e elogios para me oferecer, a quem nada disso que aconteceu comigo jamais vai interessar, a quem essa ofensa toda deve parecer muito pequena. Daria tudo por meu mundo e nada mais.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Durante as últimas férias eu li a biografia que o Stefan Zweig escreveu da Maria Antonieta. Me impressionei com muitas situações, mas uma delas não sai da minha cabeça: A indecisão de Luis XVI sobre fugir ou não de Paris quando o cerco apertou. Já tinham perdido Versalhes, Mirabeau já havia morrido e ele continuava a hesitar. Foi quem perdeu a cabeça mais rápido, não é a toa (ok, a princesa de Lamballe foi antes, mas ela era coadjuvante).
Tenho agora 29 anos e o aprendizado da segurança é diário. Há coisas que eu já nasci sabendo, sei perguntar, pedir favor, sorrir, levantar o dedo para dar opinião, escrever, escolher roupas, ouvir e observar. Mas não sei ser confiante. São várias bolas de chumbo que levo acorrentadas aos meus pés. Foi o Felipe Fernando, na 3ª série que quando me tirou no amigo oculto, ao me descrever, disse: "Ela é gorda", comentário que foi corrigido pela Tia Gilda, professora de Matemática com um "gorda não, rechonchuda". Foi também o dia que a Danielle Inácia, minha amiguinha da 5ª F, foi contar para o Fernando, da 7ª D que eu gostava dele e ele olhou pra mim e fez cara de vômito. Foram as inúmeras vezes que eu não fui escolhida para o time titular de queimado das Olimpíadas da escola porque a Fernanda Arcanjo sempre me queimava no queimado. Foi o dia que o Joaquim, professor de Matemática do 2º ano, ensinou matriz e eu achei que estava aprendendo, mas não conseguia resolver os exercícios no tempo que ele estipulava, fiquei com raiva e joguei o lápis no caderno, suspirei, desisti daquela merda e chorei. Nunca mais vi o Felipe Fernando. Ele tinha o cabelo igual ao do Latino e usava um bigodinho. Era ridículo. O Fernando, hoje em dia, é da Opus dei. A professora de Educação Física está igualzinha, eu a vi outro dia na rua. Ela não se lembra de mim, mas eu lembro dela. Quem apanha nunca esquece. E matriz... eu nunca usei e nunca vou usar.
E aí veio a juventude. Foram tantos amores contrariados, tantas tentativas de pertencer a vários lugares ao mesmo tempo...Demorou até que eu conseguisse me sentir forte o suficiente para fazer só o que me cabe. Tenho pensado que não quero ser o Luis XVI e também não quero ser a Maria Antonieta. A minha cabeça não vai ser cortada.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Buldogues me despertam ternura. Sinto vontade de cuidar deles, de vê-los dormir e acordar, escolher nomes que combinem com eles, ouvir seus barulhinhos e sentir seus cheirinhos. Minha cachorra é um buldogue. Ela ficou na casa da minha mãe e eu sinto muita saudade de, nos momentos menos esperados, segurá-la no colo e apertá-la. Seu jeito de mexer as patinhas, de esperar como se estivesse em posição de balé e a forma como se espreguiça durante o sono, são apenas algumas das razões que a fazem especial, mas há muitas outras. 

Tive uma professora na faculdade que me despertava ternura. Era Anita Prestes. Já perto de se aposentar, quando me deu aula, pouco se levantava. Dava aula falando de forma clara e num tom agradável as informações que trazia num caderno. Era muito séria e raramente fazia brincadeiras. Toda vez que eu a via sentia um enorme orgulho de estar diante dela, pensava na Olga e a imaginava neném, deixando o campo de concentração. É muito interessante imaginar uma mulher dura como aquela, neném. Anita se referia ao seu pai como "Prestes" e demonstrava um respeito muito grande pela trajetória dele. Me lembro que um dia ela foi dar aula com uns brincos vermelhos, em forma de flor, enormes. Me perguntei de quem ela teria ganhado aquela bijuteria, pois não a imagino comprando a mesma. Ela sempre vestia tons pastéis e casaquinhos. Aquele brinco rompia a dureza e deixava aparente uma possível doçura. Alguns anos depois, tive a oportunidade de entrevistar Anita Prestes para um projeto que trabalhei e, ao contar sobre todos os lugares onde morou, fugindo de Vargas e da ditadura militar, percebi que ela não guarda mágoas. Ela é para o que nasceu. Já escrevi sobre isso aqui, inclusive, como deve ser difícil ser ela. Nesse mesmo projeto, entrevistei Clara Charf, viúva de Mariguella e ela nos contou sobre a festa que foi o dia que Anita, neném, chegou ao Brasil. É bonito imaginar. As recordações da Professora Anita despertam os melhores sentimentos que existem em mim. 

Minha mãe, meu pai, minha irmã e minha avó também me fazem sentir ternura. Alguns amigos, algumas linhas de ônibus, cinemas e lugares onde estudei também, assim como alguns homens do meu passado. 
É ternura demais, acho que preciso endurecer. 

domingo, 23 de março de 2014

Descomemoração

Ontem uma amiga me perguntou se eu pretendo ir a algum dos eventos de "descomemoração" do Golpe de 1964. Achei interessante ser, pela primeira vez, a última a saber sobre essa agenda e essa nova forma de denominar o aniversário de 50 anos da ditadura. Quase um ano e meio depois, posso dizer que me habituei ao ostracismo. É como se eu nunca tivesse pertencido ao grupo de pessoas que frequentam esse tipo de situação. Fiquei pensando que essa expressão diz muito não só sobre a forma de pensar esses eventos, mas também sobre o meu passado.
Decidi então escrever aqui, nesse espaço que abandonei por medo de me expor aos urubus que adoram ser expectadores da minha tragédia, um registro sobre isso:

Eu descomemoro junto com eles
Descomemoro as longas e dolorosas exposições sobre um período escuro da nossa história
Da minha História
Descomemoro o ressentimento
Os perdões não ditos
E o rompimento de todas as trajetórias finalizadas antes da hora
Eu descomemoro a arrogância
A utopia
E o descaso com as circunstâncias
Descomemoro todos os dias os lugares onde não se pode ir mais
Os lugares que poderiam e deveriam ser nobres, mas que se mantém austeros sobre saltos de cristal frágeis
O amor e a sabedoria desperdiçados
Eu descomemoro o silêncio
E as tantas pedras atiradas 
Descomemoro o meu renascimento atravancado
As mãos e compaixões lavadas.
Eu os descomemoro 
E os percebo muito parecidos com aqueles que são descomemorados por eles
Eu me descomemoro 
Mas espero que essa tristeza chegue ao fim. 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Quem quer morrer de amor se engana.

Quando eu tinha 17 anos e estava no terceiro ano do Ensino Médio, tinha uma professora chamada Corina, que as vezes vinha dar aula de História pra minha turma. Era como se fosse uma professora substituta. Ela era bem alta e um pouco gordinha. Tinha os olhos claros e o cabelo liso, cortado na altura dos ombros. Devia ter uns 40 anos. Tinha sido aluna do IFCS na graduação. Tive poucas aulas com ela, mas foi o suficiente para que eu não me esquecesse jamais. Tudo porque uma vez ela estava explicando a redemocratização e citou o Luiz Melodia em "Presente cotidiano" quando ele diz que "quem quer morrer de amor se engana".
Demorei pra conhecer essa música, mas nunca, nunca esqueci essa frase. E hoje, terça feira a noite, depois de uma traição, de um perdão e de muitas lágrimas, estou ouvindo repetindamente a versão da Gal Costa dessa obra prima. É tão bonito que me consola.
Tá tudo solto na minha vida. Momentos são momentos, muito drama. Meu corpo é natural da cama. Vou caminhar um pouco mais atrás sempre. Tudo gira, ai de mim. Tudo que é sólido desmancha no ar. Tá tão ruim, tá tão ruim...
Musica linda, vida merda.